sábado, 12 de abril de 2008

Uma noite com Cartola

Num sábado, do ano de 1974 - eu ainda morava no Rio - lendo o Caderno B do Jornal do Brasil, interessei-me em ir a um show de João Nogueira, no Teatro Santa Rosa, no Rio. Na época, fazia sucesso nas rádios, o samba “Batendo a Porta”, parceria do João Nogueira com Paulo César Pinheiro, no qual o Joel do Nascimento fazia um solo de bandolim maravilhoso. Liguei pra namorada e combinamos o horário de ir. Morávamos na Tijuca (início da Zona Norte) e o Teatro Santa Rosa , que depois virou Discoteque - ficava em Ipanema (Zona Sul). Não tinha automóvel e tivemos que sair cedo para pegar o ônibus Usina-Leblon, linha 415, na Praça Saens Pena.

Ao chegarmos é que percebemos que um outro cantor e compositor dividiria o palco com o João Nogueira. Era Cartola. Eu tinha 19 anos e conhecia muito pouco sobre ele, porém sem nenhuma profundidade. Lembrava de algumas faixas cantadas por Paulinho da Viola. Na verdade, Cartola fazia umas poucas aparições neste show, apenas com um violão, que mais tarde, fiquei sabendo, nem lhe pertencia.

Ansioso por ouvir os sambas de João Nogueira, aos poucos fui me entusiasmando por belíssimas melodias apresentadas por aquele crioulo magrinho, do nariz preto, a mesma cor e tonalidade dos óculos escuros que usava. Uma forma singular de tocar o violão e de cantar fisgou o meu coração e o de minha namorada. Estávamos espantados. Gostávamos de samba e não conhecíamos bem aquele compositor. Mas o show era do João Nogueira!

Acabadas as apresentações resolvemos ir aos camarins e falar com Cartola. Para nosso espanto, imprensa e público tentavam chegar perto de João Nogueira, deixando aquele outro gênio ali, sozinho, livre para nos receber. Sua simplicidade nos encantou. Ele estava surpreso que um casal tão jovem o tivesse procurado após o show, que era do João Nogueira. Foi aí que soubemos que sua participação tinha sido uma camaradagem do João Nogueira, para que o Cartola recebesse algum, numa época de dificuldades. Incrível! O rosto triste, que percebêramos durante o show, deu lugar a uma nítida alegria, a um sorriso lindo!

Depois de verificar minhas finanças na carteira, resolvi convidar Cartola para um vinho na adega que ficava anexa ao teatro, pedindo dele apenas que levasse o violão. Mais um espanto: aquele violão da apresentação não era seu. Tomou-o emprestado de um músico que acompanhava o João Nogueira, e já o devolvera. Mas tomar o vinho ele topou. Deixei-o tomando os primeiros goles do "vinho da casa" e voltei para a Tijuca, de táxi, para pegar meu violão. Em uma hora estava de volta e já o encontrei sorridente. Nem foi preciso pedir...entreguei o violão em suas mãos e ele saiu tocando. Tinha 65 anos na oportunidade. Mas se não fosse o ar triste, exibido durante o show, não lhe daria mais que 50 anos. Descobrimos, depois que ele reafinou o pinho, que já conhecíamos várias músicas dele. Só não sabíamos quem era o compositor. “Alvorada”, “Amor Proibido” e “O Sol Nascerá” eram algumas destas.

Depois de muitas canecas de vinho e lindas canções, tomamos um táxi de volta, via Laranjeiras, onde o deixamos. Nem perguntei se morava lá ou se ainda ia “esticar” em outras paragens. Para nós ficou aquela sensação de termos passado uma ótima noite. Não fazíamos idéia do que tínhamos passado. Alguns meses depois, quando veio o reconhecimento e as gravações de Beth Carvalho, seus Discos e as aparições na TV é que eu me dei conta do ocorrido.

Fiquei com um autógrafo dado na minha caderneta de freqüência do Curso Hélio Alonso, onde fazia o pré-vestibular, que guardo até hoje e a felicidade de saber que, no violão acústico que até hoje toco, Cartola também tocou.

13 comentários:

Anônimo disse...

Ah, que maravilha aquele Rio de Janeiro em que você ia a um show e, de repente, acabava cantando num bar com um grande artista que nem estava programado originalmente. Cartola tinha ressurgido quando foi "redescoberto" pelo pessoal politizado da Bossa Nova (Nara, Carlinhos Lyra e outros). Fez shows, ganhou notoriedade, chegou até a abrir um restaurante com a mulher (o Zicartola, aberto em 1963, com o apoio de um grupo de jovens empresários), que também era casa de shows. Mais veio a Redentora e tudo se bagunçou. Nara exilou-se na França, Carlos Lyra no México, os jovens empresários adotaram a seriedade imposta pelo regime e abandonaram companhias tão subversivas. "Acabou nosso Carnaval / Ninguém ouve cantar canções...", disse Vinicius. Cartola esperaria os fins da década de 70 para reaparecer de novo.
E me lembrei de uma coisa: eu também, quando estudante, colhi uma vez o autógrafo de Ataulfo Alves em minha caderneta da escola. Só que que não tenho a mínima idéia de onde tal caderneta foi parar...

CLÁUDIO CALDAS disse...

O comentário acima é do João Daltro.
Grato pela visita irmão. Mas faltou dizer em que circunstâncias se deu este contato com o Mestre Ataulfo.
E na próxima assina o post né o anônimo?
Abraços

CLÁUDIO CALDAS disse...

Recebo mensagem do Wágner Segura, grande mestre das cordas, dizendo-se maravilhado com a matéria do Cartola. Grato pela visita Mestre. No dia 30 estarei curtindo o seu show no CIC.
Abração

Anônimo disse...

Estou frente a um verdadeiro artista que nem eu mesmo, quando pequeno, me dei conta...pouco pude aproveitar das caronas ao Colégio Nossa Senhora de Fátima e me deparo hoje com uma pessoa de muito gosto por minha família e com uma preferência especial pelo verdadeiro samba. Salve Salve seu Caldas...saudades!
Ass: Guilherme Weiss Freccia

CLÁUDIO CALDAS disse...

Gustavo,
Pois é o tempo passa...os adultos nãopercebem o potencial de uma criança. Já poderíamos ter batido este papo há muito tempo né?
Sua visita ao Blog qualifica-o e nos impõe a responsabilidade de elevar o nível das discussões.
Um abraço a todos os Freccia.

Anônimo disse...

Grande amigo,
Muito legal o relato do seu encontro com o Cartola.
Imagino a sua emoção ao escrever e lembrar dos detalhes do encontro.
Valeu
beijos
Didi

Anônimo disse...

Só faltaram as lágrimas.
Muito lindo, e eu já vi dita caderneta, que bom poder compartilhar com você este momento .

Parabéns!!!
Junior do cavaco

Nota 2: ainda estou esperando os Marcados.

Um abraço.

CLÁUDIO CALDAS disse...

Didi,

Foi emocionante sim. Mas confesso que na ocasião não me dei conta do que rolava não.
Grato pela visita. Volte sempre, irmã!

CLÁUDIO CALDAS disse...

Guilherme,
Tô sabendo que vc. curte samba. Precisamos nos ver né?
Saudações azurras!

CLÁUDIO CALDAS disse...

Júnior,
Quando meu scanner voltar a funcionar eu até penso em publicar o autógrafo. mas valeu pelo testemunho.
Os Marcados virão.. pode crer...
Abraços e obirgado pelas visitas.

Anônimo disse...

Caldas,
parabéns pelo texto "Uma noite com Cartola", onde vc divida com todos nós essa experiencia fascinante. É de arrepiar!!! 1 abraço
Pierre

CLÁUDIO CALDAS disse...

Pierri,
Primeiro grato pela visita. Tenho saudade de vc. Mas pode me esperar que um dia eu apareço por aí.
Rapaz, na época eu não tinha muita noção do que passei. Só depois é que o tempo me mostrou o valor daquele encontro.Um grande abraço!

Alisson Mota disse...

OLá Caldas, estou conhecendo o teu blog só agora e me deparei com sua matéria sobre o Cartola. Que privilégio! Confesso que me deu até uma "invejinha". Seria bem interessante se fosse publicado aqui no blog este autógrafo, acho que deixou muita gente curiosa. Abraços
Alisson.